10 novembro 2006

EU AVISEI:
Há mais de vinte anos que dedico alguma atenção às questões do ambiente, procurando agir prática e pedagogicamente em conformidade com as exigências de tais questões. E do diálogo à publicação em livro, passando pela comunicação na imprensa regional, várias foram já as vezes em que me obriguei a expressar a minha opinião a propósito do assunto.
O texto seguinte, elaborado em 1996 mas só publicado em 2003, continua a fazer sentido, ou melhor, cada vez mais sentido, infelizmente. E uma vez que os problemas ambientais voltam a estar na ordem do dia, passo a transcrevê-lo quase totalmente aqui e agora.
6 - Contagem decrescente

Será por respeitar demais a Natureza que as preocupações provocadas pelos problemas ambientais me apoquentam tanto? Talvez, e sobretudo pelo facto de esses problemas resultarem, não da Natureza, que é causa e consequência de si própria, mas da acção descuidada ou mesmo conscientemente destruidora do ser humano. Não é, pois, por acaso que de alguns anos a esta parte tenha vindo a manifestar, publicamente e por diversos meios, a minha esperançada aflição relativamente a tais questões. Porém, com o decorrer do tempo, toda a esperança no bom senso das sociedades contemporâneas, todas as expectativas geradas no contexto das observações científicas, das movimentações ecologistas e das convenções políticas e toda a fé no trabalho pessoal desenvolvido se foram desvanecendo para darem lugar à frustração e à pena por esta espécie a que pertenço estar disposta a acabar consigo própria e com todas as outras formas de vida que ao longo dos milénios e com mais ou menos custo caracterizaram este Planeta.
Em 1992, considerei a Cimeira da Terra – esse encontro de personalidades de todo o mundo que tivera lugar no Rio de Janeiro, sob a égide das Nações Unidas – como o início da última escolha. Cheguei mesmo a acreditar que se trataria da grande (talvez a derradeira) oportunidade de a Humanidade tomar consciência do aproveitamento que vem fazendo do seu Planeta e procurar efectivamente resolver e evitar os problemas ambientais que tão desleixadamente lhe provoca. Mas o estado de graça – no qual esse momento de esperança quase me fez acreditar – não surgiu e advento não houve, pois a tão esperada boa-nova ficou perdida aquém do limiar da inteligência humana. Tudo porque o Homem se havia perdido, há muito tempo já, nos conceitos de desenvolvimento, de progresso e de riqueza que entretanto inventara e não quis, não quer e já não é capaz de alterar. E mesmo que algo tenha sido feito para inverter o sentido catastrófico em que o Planeta rola, também se verifica que tal sentido parece cada vez mais nítido, como mais curta se torna, a cada momento, a distância que ele indica. É que para casos desta importância, porventura o da maior importância, em que é a continuidade da vida na Terra que está em causa, não bastam as soluções pontuais, os pequenos remedeios, como vem acontecendo. Torna-se imperiosa a tomada de grandes opções, as quais, diga-se de passagem, não serão fáceis de assumir. Mas quanto mais tarde vierem a ser postas em prática as necessárias medidas, mais radicais elas terão de ser, sob pena de a breve trecho entrarmos na era da sobrevivência, como já observei noutra ocasião.
Se é verdade que a problemática ambiental tem sido, de há décadas a esta parte, objecto de análise, nunca como agora foi observada com objectivos estranhos a si mesma, passando a servir protagonismos diversos, sobretudo os de quem dela se aproveita. Não há político nem governante que se dispense de abordar a questão, como não há movimento de ecologistas que nela não se apoie para se afirmar, ou não sejam esses movimentos consequência de tal problemática. Aqueles, podendo fazer alguma coisa, por vezes muita coisa, raramente tudo, acham sempre que o assunto não lhes é suficientemente favorável por dificuldade de opção ante “gregos”, “troianos” e outros, a quem não desejam desagradar; estes, nada podendo fazer para além das pressões que eventualmente exerçam sobre aqueles.
A uns e a outros se junta a populaça como que a querer dizer que também existe. Se esta vai na conversa dos primeiros é mais para se opor a quem se manifesta contra do que para desejar que algo se faça, porquanto ela própria não está interessada nisso para escapar às responsabilidades que também lhe cabem. Se faz coro com os segundos não é tanto por estar de acordo com eles, mas seguramente por pretender contestar os outros.
De facto quase ninguém se interessa verdadeira e seriamente por este tipo de questões. A prova está aí, bem à vista, com os problemas a agravarem-se a cada instante.
Existem diversos organismos, oficiais e clandestinos, que vão dos que se dizem de abrangência internacional até aos de dimensão local; instituíram-se anos, meses, semanas e dias do ambiente, da floresta, da árvore, etc.; produzem-se filmes, artigos de opinião, revistas, jornais, livros, cartazes e outras publicações mais ou menos especializadas; continua, enfim, a desenvolver-se todo um conjunto de acções que parecem vocacionadas para a defesa e preservação do que ainda resta do Planeta. No entanto, são cada vez em maior número as praias e os rios sem condições para a prática de banhos, enquanto os banhos de sol se tornam, a cada dia que passa, mais perigosos; o efeito negativo das chuvas ácidas sobre a agricultura, e não só, continua em crescendo; a água que brota das fontes e dos poços em vez de matar a sede de quem a bebe, mata quem a bebe por ter sede; as leis do mar não são respeitadas e, em consequência, os mantos negros lá surgem, de vez em quando, para cobrir as suas águas; os lixos nucleares vão-se amontoando na terra, mas o mar também os recebe em quantidades medonhas, e quem sabe se até o ar...(?); se os fumos das chaminés fabris parecem diminuir, aumentam assustadoramente os gases expelidos pelos escapes dos automóveis; a desarborização do Planeta avança desordenadamente; o Homem torna-se o maior predador; a harmonia visual da paisagem vem dando lugar ao caos do cimento armado que cresce em qualquer sítio para causar fobias a tanta gente; o ruído ensurdecedor chega a todo o lado; a alteração biológica dos seres vivos e consequentemente dos produtos alimentares já não é novidade; as doenças crónicas continuam a desenvolver-se ao mesmo tempo que novas patologias aparecem; a fertilidade dos solos e a produção animal para consumo baseiam-se na química sintética. Em síntese, tudo resultando da acção humana, como expressão de progresso e desenvolvimento, assim considera a própria Humanidade.
O apego do ser humano ao sentimento materialista, a ganância pelo poder, quaisquer que sejam o tipo, a dimensão e as características desse poder, e o desprezo pelo valor de certos escrúpulos e por alguns princípios ditos de ética, mesmo que estes também tenham resultado da concepção humana, contribuem decisivamente para o modo errado como o Homem valoriza a sua existência. Incapaz de discernir quanto à verdade cósmica de que, queira ou não, participa, julga-se o centro do Universo. E agindo em função de si mesmo, isto é, dos seus interesses, não se apercebe de que tudo o que à sua volta existe com vida é tão importante quanto ele, enquanto consequência da Criação, da Natureza-Mãe.
Mas para si o Homem justifica-se sobretudo pelo que faz. E é com base nisso que fala de progresso e de desenvolvimento como que se trate de uma fatalidade positiva, engrandecedora de si e da sociedade a que pertence.
Evidentemente que uma parte significativa da sua obra tem de ser considerada necessária, por sermos animais sociais e culturais, e indispensável, até, por razões de sobrevivência da espécie. Mas o resto dessa obra acaba por desacreditar o seu todo, não passando de produto pernicioso que resulta de um comportamento errado, de efeitos desastrosos para a vida na Terra.
Poucos concordarão com este modo de encarar o problema. Porém, do outro lado não faltará, certamente, quem o entenda apenas como uma provocação alarmista, sem fundamento, e por isso o rejeite e sobretudo o conteste. É desse outro lado que estão as grandes potências industrializadas, destruidoras do equilíbrio que a Terra há tanto tempo atingira; é também aí que se encontram os que querem poluir, esperando a oportunidade de o fazer; por fim, os que não desejam participar desse atentado, mas que nada fazem para o evitar. Todos, afinal, a contribuírem para o tal progresso e desenvolvimento que tanto defendem, para a tão propalada qualidade de vida a que tanto aspiram.
Mas que progresso será esse que leva à destruição das camadas do ozono? E que desenvolvimento se pretenderá se as alterações climáticas são já evidentes, com o efeito de estufa a acentuar-se, os gelos da Antártida a fundirem-se e algumas zonas do globo a submergirem?
E que qualidade de vida ambicionarão com o levantamento, na periferia das cidades metrópoles e dos grandes centros industriais, de dormitórios que mais parecem favos em cimento do que casas onde se goste de habitar? Que qualidade de vida será essa que impõe horas de desespero nas filas de trânsito, de casa para o emprego e do emprego para casa, em cerca de trezentos dias por ano? Que qualidade de vida é essa, se o consumo de ansiolíticos e de antidepressivos é cada vez maior? Que qualidade de vida será essa, se os tempos livres da maioria das populações dos países ditos desenvolvidos são passados a consumir o que as economias de mercado lhe impingem, mesmo que de produtos de supérflua necessidade se trate? Enfim, de que qualidade de vida falarão quando o ar que respiramos, as águas que bebemos e os alimentos que comemos estão contaminados?
Cada vez mais se verifica que o significado da vida em sociedade vem sofrendo, a cada dia que passa, alterações mais ou menos evidentes. E não parece difícil de concluir que certos conceitos mudam em função dos resultados que os poderes económicos prevêem, impõem e esperam. Daí não ser estranho que atribuam qualidade à vida quando a artificializam, ou valorizem o progresso e o desenvolvimento enquanto fenómenos inerentes àqueles poderes, não obstante tais fenómenos poderem comportar em si mesmos desprezo pelas realidades que procuram suplantar, mesmo que essas realidades tenham estado e/ou estejam em perfeita consonância com o contexto natural do tempo e do espaço em que se situem.
Chegou, há alguns dias, o fim de 1995, ano que denominaram Ano Europeu para a Conservação da Natureza, não sei se com o objectivo de novamente se chamar a atenção do mundo para a situação cada vez mais grave que o afecta ou se com qualquer outro propósito. De significado pouco expressivo, dado o que se viu e ouviu, pelo menos no nosso país, de nada terá servido relativamente à questão em abordagem, pelo que a realidade de então acabará por ter continuidade, para desgraça nossa.
Como de outro modo já disse, no início deste apontamento, de nada servirão medidas avulsas que enquanto tal não passam de meias medidas. A Ciência sabe-o. Por isso, adiar o que deveria ter sido feito a tempo e horas só contribui para agravar a situação. Custa (?) é compreender o porquê de tal adiamento. Já não haverá capacidade para se pôr em prática medidas suficientemente adequadas? Acreditarão, aqueles que o podem fazer, que a sua aplicação já não vale a pena? Então porque vêm, de há anos a esta parte, a sugerirem acções concertadas neste domínio? Será que tudo não tem passado de conversa para iludir quem sente de facto o problema e está verdadeiramente preocupado?
Bem vistas as coisas, que importa ter-se dito que se pretende estabilizar as emissões de CO2, de modo a que no ano de 2000 elas não excedam os valores atingidos em 1990 – o que será impossível, aliás, atendendo-se à evolução do fenómeno –, se foram as fontes poluidoras da atmosfera em actividade antes daquela data que desenvolveram o preocupante efeito de estufa que nos irá sufocar?
De que valerá tentar rearborizar a Terra se a destruição das suas florestas abrange milhões e milhões de hectares? E mesmo que fosse possível recobrir tão vasta área – que não é o mesmo que fazer ressurgir os microclimas e os eco-sistemas desaparecidos – quantas décadas ou séculos demoraria tal reparação?
De que servirá abandonar-se (por hipótese) a produção de energia nuclear se os lixos dela resultantes continuarão, por tempo ilimitado, à espera de se transformarem em terrível catástrofe?
Apesar de tão pavoroso vaticínio, que se reduzam, sim, os valores de CO2, que se plantem muitas árvores e que se desenvolvam alternativas à produção de energia nuclear.
Contudo, pensando bem, acções concertadas, mesmo que sem equilíbrio (como que nestes casos o equilíbrio possa existir), é o que mais tem havido, desde há muito, mas em sentido negativo, pois todas elas têm concorrido para a destruição, apesar de inerentes (ou talvez por isso mesmo) ao progresso e ao desenvolvimento. Que têm sido as explorações petrolíferas, o abate das florestas, a evolução nuclear, para referir apenas os exemplos há pouco anotados, senão acções concertadas e bem pensadas?
Por muito que nos custe aceitar, já não há soluções eficazes para o problema. Passou tempo demais, e agora ter-se-á de dizer que a verdadeira solução já existira; existira antes, antes das causas que a implicam, ou seja, no não poluir – realidade que foi, para hoje não passar de utopia –; só que essa possibilidade, que não tinha necessariamente de significar a paragem da vida activa, outra coisa não significa quando observada por quem tem o poder de decidir; e parar, depois da Revolução Industrial, depois de todas as revoluções que nos fizeram chegar à Era Espacial, não faz sentido para essa gente.
A verdade é que a Terra está em perigo. As agressões que sofreu ao longo do tempo, sobretudo neste século*, abalaram significativamente o seu equilíbrio, a vários níveis. Os verdadeiros resultados dessas agressões estarão ainda para vir, pois o estado de catástrofe é progressivo e está apenas no seu começo. Mas parece que ninguém se apercebe de que o mundo entrou em contagem decrescente.
É urgente, pois, a tomada de consciência relativamente à fatalidade que nos sujeita, para que, apesar das dificuldades de se conseguirem soluções paliativas, se faça alguma coisa para evitar que o tarde demais chegue mais cedo.
*
Independentemente do que se diga sobre a questão, a verdade é que a Terra está mesmo em perigo. E se é legítimo o apelo à consciência dos homens para que algo se faça no sentido de minimizar a gravidade do problema, também se justifica que se questione sobre quem são os culpados e os cúmplices de tão preocupante situação.
Todo o ser humano é potencialmente poluidor e destruidor da Vida; basta que exista. E sê-lo-á efectivamente desde que tenha acesso às fontes de poluição e aos meios destruidores. (...) Mas os verdadeiros responsáveis pelo gravíssimo estado em que a Terra se encontra - responsáveis porque são quem produzem ou mandam produzir tudo o que polui e destróem ou mandam destruir o que à Natureza tanto custou a criar - não são obrigados a actuar como actuam, e fazem-no. Fazem-no esquecendo-se que esta Pátria Universal é de todos por igual, e não de meia dúzia de bestas erectas, grupo de criminosos - conceito tão corrente em qualquer sociedade, mas tão raramente extensivo a gente dessa - que eles próprios fazem questão de constituir. Esquecem-se, dizia, tanto quanto se lembram de acusar alguém, uma vez que de bodes expiatorios não prescindem para sua ilibação, recorrendo a argumentos mais ou menos falaciosos e a vestígios de verdade(2) com que procuram fundamentar as suas acusações. E quem são esses responsáveis?
Atendendo aos focos e agentes de poluição com que o Planeta se debate e ao estado irreversível em que deixaram os seus pulmões verdes, seria interminável a relação daqueles a quem têm de ser imputadas as inerentes responsabilidades. Por isso não faz sentido particularizar as situações, quanto mais pessoalizá-las em tão breve abordagem. Pode-se é afirmar que o fenómeno tem origem nos países ditos desenvolvidos, embora muitas vezes, em consequência dos desmandos dos seus potentados industriais, chegue aos outros, incluindo os do chamado terceiro mundo, onde se desenvolve e causa os maiores estragos. E desses países desenvolvidos sobressai aquele cujos governantes teimam em julgar-se os verdadeiros senhores do mundo e em fazer crer que o são. Trata-se, obviamente, dos Estados Unidos da América. País que, sendo, por si só, responsável por cerca de 25% das emissões de gases para a atmosfera – não falando dos aspectos destruidores, a outros níveis, fora do seu território, como na Amazónia, por exemplo –, não pode deixar de ser mencionado. E tanto mais não pode quanto mais abundante tem sido (e provavelmente continuará a ser) a arrogância de quem o tem governado. Ainda que essa arrogância se manifeste sobretudo no capítulo das ingerências nas políticas e soberanias alheias, também no domínio do ambiente ela é notória. G. Bush demonstrou-a em 1992, aquando da Cimeira da Terra, no Brasil, ao pôr objecções às propostas lá ventiladas relativamente à diminuição dos poluentes atmosféricos, tendo sobreposto a tão urgente necessidade a paranóia do desenvolvimento do seu país. Que se passará na mente de tais criaturas? Pensarão elas que a terra e a gente que governam não estão sujeitas às consequências de tais intrepidezes? O pior é que decisões idênticas continuam e continuarão a ser tomadas; ninguém duvide (3).

São decisões desse carácter e a inexistência de outras com força bastante para as contrariar que estimulam as acções que tornarão insuportável a vida no Planeta – esta maravilhosa obra que a Suprema Natureza tanto tempo levou a conceber.
E a Humanidade – que se sente emancipada e detentora da mais elevada sabedoria, que muito valoriza as causas da justiça, que condena com satisfação, mesmo indevidamente ou com penas absurdas, como a prisão perpétua e a pena capital, aqueles que ela própria origina e integra, chamando-lhes criminosos – não quer ou não é capaz de ver que segue e aplaude quem decididamente perpetra o maior e definitivo crime contra si própria: o fim da História!
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* - Referência ao séc. XX.
(2) - Apenas os vestígios de verdade lhes interessa, uma vez que a verdade por inteiro acaba por reflectir a realidade a que eles próprios deram e dão origem.
(3) – Afirmação esta confirmada agora, cinco anos depois de elaborado o presente texto, ao surgir a expectativa gerada à volta da reunião de Kioto. Expectativa à qual o novo chefe americano – que para desgraça de todos se chama George W. Bush e é filho do anteriormente citado – se recusa a corresponder, com o argumento de que para o efeito «os custos económicos não serão compensados pelos benefícios» a esperar. Tal pai, tal filho...!
A carta que neste momento (12 – 04 – 2001) lhe endereço apela para a sua mudança de atitude e alerta para a importância e necessidade de «amanhã poder haver quem se orgulhe das acções dos homens de hoje». Mas sabendo-se que a política que defende é desfavorável ao implemento de medidas que possam obstar à degradação do Planeta, não é de esperar que esta inocente chamada de atenção dê frutos. Resta-me a utopia em que necessito de acreditar.

Fonte: Sá, Sérgio, Largada de Pombos Bravos, 2003

Eu avisei. Ningém fez caso. Mas as últimas dos sábios já poucas décadas dão de clima suportável para Portugal, Espanha e Itália, pelo menos. Depois será o que se prevê para o resto do Mundo.

E agora?

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